A recente apreensão feita no Porto de Vitória, envolvendo um carregamento milionário de substâncias médicas escondidas em copos térmicos, revela mais do que um esquema de contrabando bem articulado. Expõe uma fragilidade estrutural que vai além da alfândega e toca diretamente a forma como o Estado regula, fiscaliza e, sobretudo, se posiciona diante de uma crescente demanda social por soluções de saúde. A omissão política em relação ao controle de medicamentos de uso restrito, aliada à ineficiência na formulação de políticas públicas de vigilância, abre brechas perigosas exploradas por redes criminosas.
A saúde pública, constantemente utilizada como bandeira política em campanhas eleitorais, mostra-se vulnerável quando casos assim ganham os noticiários. Embora muito se fale sobre regulação e vigilância sanitária, faltam ações concretas e integradas entre os poderes para barrar o avanço de substâncias que entram irregularmente no país e são revendidas sem qualquer controle técnico. A passividade de alguns setores da esfera política diante dessas operações clandestinas reflete uma desconexão entre o discurso institucional e a realidade enfrentada pela fiscalização nos portos e aeroportos brasileiros.
É necessário destacar que o tráfico de substâncias médicas com apelo estético ou de emagrecimento cresce justamente pela ausência de políticas públicas de acesso e educação em saúde. Quando o Estado falha em garantir soluções seguras e acessíveis, a população recorre ao que está à disposição, mesmo que isso signifique colocar a vida em risco. O resultado é um mercado paralelo fortalecido, sustentado por interesses comerciais e políticos que se beneficiam do caos e da desinformação. Não se trata apenas de repressão, mas de entender por que tantos buscam alternativas fora do sistema formal.
O desmonte de órgãos reguladores ao longo dos anos, por decisões políticas que priorizaram o enxugamento do Estado em nome da eficiência, também contribuiu para esse cenário. A redução de equipes, cortes orçamentários e falta de investimento em tecnologia criam uma estrutura enfraquecida, incapaz de acompanhar a evolução das técnicas de contrabando. A questão, portanto, não é apenas de segurança, mas de governança. A política pública precisa ser revista à luz de um novo contexto, no qual a medicina se tornou alvo de interesse comercial, eleitoral e criminal.
O episódio em Vitória levanta questionamentos importantes sobre a responsabilidade dos poderes Executivo e Legislativo na regulamentação da venda e circulação de substâncias com impacto direto na saúde da população. A ausência de leis mais rígidas, a demora em fiscalizações e a lentidão em processos investigativos criam um ambiente de permissividade. A falta de debate sério no Congresso Nacional sobre esse tipo de prática mostra que, muitas vezes, temas urgentes são negligenciados em nome de disputas ideológicas ou de interesses privados que rondam os bastidores do setor farmacêutico.
Ao mesmo tempo, é necessário cobrar do Judiciário mais celeridade nos processos que envolvem o tráfico de substâncias dessa natureza. A judicialização da saúde tem crescido, e decisões liminares por vezes contraditórias permitem brechas para que medicamentos ainda não regulamentados ou com venda restrita sejam utilizados fora dos parâmetros científicos. Essa permissividade jurídica, somada à falta de articulação entre os poderes, cria um ciclo vicioso em que o Estado não consegue agir com unidade. A política, nesse cenário, precisa deixar de ser reativa e assumir um papel proativo e firme.
A sociedade, por sua vez, começa a perceber que esses episódios não são apenas desvios isolados, mas parte de uma engrenagem maior, onde a ausência do Estado em áreas fundamentais se converte em espaço para o crime. A política deve responder à altura dessa percepção, com reformas que valorizem os órgãos de controle, incentivem campanhas de conscientização e criminalizem de forma exemplar os envolvidos. Não se pode permitir que práticas criminosas se tornem normalizadas por falta de ação governamental. É uma questão de saúde, mas também de responsabilidade institucional.
Esse caso deve servir como divisor de águas no modo como os gestores públicos e representantes do povo lidam com a saúde, o comércio ilegal e a proteção da população. A política precisa assumir seu papel central não apenas como formuladora de leis, mas como agente ativo de transformação social. Repressão, investigação e punição devem andar de mãos dadas com prevenção, acesso, fiscalização e responsabilidade pública. O episódio em Vitória não pode ser apenas mais uma manchete, mas sim um alerta claro de que a ausência de política forte gera um Estado frágil — e, nesse vácuo, quem domina é o crime.
Autor: Arkady Prokhorov